"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

25.9.12

RILKE - AS ELEGIAS DE DUÍNO

A QUINTA ELEGIA
Dedicada à Sra. Hertha Koenig

...

   E agora tu, ó encantadora,
tu por cima de quem saltaram,
silenciosas, as mais atraentes alegrias. É possível
que as franjas do teu vestido sejam felizes em vez de ti -- ,
ou que a verde seda metálica
que te cobre os jovens seios rijos
se sinta infinitamente acarinhada e repleta.

Tu,
sempre diversa em todas as oscilantes balanças do equilíbrio
fruta de mercado da insensibilidade,
publicamente exposta dos ombros para baixo.

Onde, oh onde fica o lugar - trago-o no coração - ,
em que durante muito tempo eles ainda não podiam, nem um do outro
se soltavam, como animais que se cobrem, não
verdadeiramente acasalados ; --
em que os pesos continuam a pesar;
em que ainda no giro vão
das varas vacilam
os pratos...

E de súbito nesse penoso lugar nenhum, de súbito surge
o sítio invisível, onde a pura escassez
incompreensivelmente se transforma - , dá o salto
para esse excesso vazio.
Onde sem números
se abre a conta de muitas parcelas.

...

AS ELEGIAS DE DUÍNO
RAINER MARIA RILKE

ASSÍRIO&ALVIM
introdução e tradução  MARIA TERESA DIAS FURTADO
2ª EDIÇÃO . 2002

5.9.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


b;

Tu, de pé, recortado pelo ar e pelos pássaros, acesso
negro, procuravas o lugar incerto em que o rio e o mar
se encontram. E teria talvez mudado a mão

das árvores que em mudando o vento
soprariam para o largo a tua vida. - Contos largos
se mo permitem. E, contudo, estreita ficava
a vida ao fim de ser contada. Contos e recontos:

assim o rio se perdera noutro mar
como na voz de quem cantava sem manhã

MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão

CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

4.9.12

LUGAR | herberto helder



                                    II

Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pendúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinzas transformada.
Em dedicatória sangrenta
...

herberto helder
POESIA TODA

ASSÍRIO&ALVIM    NOVEMBRO 1990