Tenho, por estes longos e deliciosos dias, confrontado-me com a vida no seu estado mais puro. Uma vontade imensurável de a amar em toda a sua plenitude; nos problemas, na angústia das permanentes incertezas, no trabalho que estou a desenvolver para um evento expositivo para Janeiro, nas pequenas coisas que vou soltando em forma de escrita e na disponibilidade desejada para sentir os outros e deixar que me sintam a mim.
Ontem, em conversa intensa e interessante, que a determinada altura transbordou do leito normalmente sereno e fluído do meu rio, por questões de semântica e amplitude compreensiva toldada, pressenti que a inundação não prevista, não podia estar relacionada com as nuvens que tinham acabado de passar. Inconsequente, a almofada adormeceu-me.
Ao acordar, lembrei-me do Antoni Tàpies e de um artigo que escreveu em 1970, " Nada é Mesquinho", em que ele faz o esforço de tentar explicar por palavras, o que a todo o instante lhe é solicitado sobre a sua obra - " Além disso, pensamos também: não é o meu trabalho, para isso existem os críticos e os comentadores de arte que o podem fazer. Mas os remorsos que nos provoca a constância de tanta gente de boa fé não param de espicaçar-nos. ... Geralmente, quem pergunta quer saber qualquer coisa de uma obra determinada, ou até apenas de um sinal ou de um fragmento concreto. E hoje,..., o sentido de uma obra não se encontra sequer na própria obra, pois a obra está relacionada com muitas outras, próprias ou alheias. Explicar uma obra de arte já é quase fazer toda a história da arte do nosso tempo." Recorrendo a parábolas e metáfora, remetendo para situações comparativas com outras artes e posturas de contemplação e práticas da arte em outras civilizações, continua o esforço. "...Olhemos finalmente para uma determinada obra minha, posto que o leitor deve querer saber de uma vez por todas como é que me vou desenvencilhar de tudo isto. E vamos pegar numa difícil, para ser mais engraçado. Numa que foi discutida e a propósito da qual alguém me disse, apesar de ser meu amigo, ser-lhe impossível ver nela fosse o que fosse. Trata-se de uma obra feita com fibra vegetal, uma espécie de filamentos de palha muito frisadas que se costumam utilizar para atapetar ou encher colchões. Intitula-se "Palha e Madeira".
A obra é uma tela branca, com palha entrelaçada colada e dividida em duas partes por uma ripa de madeira. Meticulosamente vai descrevendo a simbologia utilitária e cultural da palha, material pobre e de utilização desqualificada,"...E tudo isto não é por sentimentalismo nem por qualquer gosto "artístico" pela miséria, mas sim para fazer compreender a " naturalidade primeira" da dialética e da luta de todas as coisas,...", bem como a importância do dois resultante da divisão,"...Os entendidos em simbolismos aplicados à arte - embora, prudentemente, quase nunca extraiam de tudo isto consequências práticas - dir-nos-iam, claro, muito sobre mais coisa do que eu sobre este dois: a oposição, o conflito, a reflexão, o equilíbrio ( ou o desequilíbrio em potência), o criador e a coisa criada, o preto e o branco, o masculino e o feminino, o yin e o yang, a vida e a morte, o bem e o mal, o alto e o baixo."
Quando me perguntam pela vida, tenho maiores dificuldade em a mostrar que o Tàpies tem em relação à sua Obra; não tenho o génio nem a mestria ou erudição e vida vivida que o Mestre tem, por isso vou cita-lo, "...Para o pintor existe apenas um monte de palha, e um dois. E ainda um dois que é um. E todos têm o direito a dizer-lhe, se quiserem, que é um farsante, que tudo isso é falso, que é um engano. Porque ele julga o mesmo. Um quadro não é nada. É uma porta que conduz a outra porta. A arte, por mais excelente que seja, será sempre mais uma manifestação da "maya", do engano que tudo é. E nunca encontraremos a verdade que procuramos num quadro, pois esta aparecerá depois da última porta que o contemplador souber franquear com o seu próprio esforço. E quanto mais importante for o quadro, e mais importantes as personagens nele pintadas, e mais cores e mais camadas de tinta nele houver, mais espesso será o véu que nos ofusca a verdade e menos encontraremos o caminho."
Embora tenha iniciado o texto de forma optimista, de vez em quando também me apetece fazer como o Mestre, embora a componente do sonho esteja suspensa, "...E então, penso que mais vale virar costas a tudo e sentarmo-nos numa cadeira, como um dia me disse a minha companheira que fiz num sonho; uma cadeira a flutuar no meio da brancura do espaço infinito; e, de repente, olhar para a terra e sentir aquela emoção tão intensa e sublime que a fez chorar vivamente ao ver espalhadas umas migalhas de coisas, nada, uns resíduos ligeiros, uns fios de palha..."
O frémito impulsionador que me impele para a incontornável afirmação de algumas coisas na vida, que não sei separar da arte, não é ofuscado por caldeirões de ouro que me vão seduzindo para descansar. Gosto da palha para repousar o espírito, mesmo que me incomode o corpo.
O galgar das margens afinal aconteceu, pela preocupação afectuosa de perceberem se o pão que tenho que conquistar, ainda estava em farinha ou no forno a cozinhar.
As citações foram retiradas do livro
" Antoni Tàpies - a prática da arte "
Edições Cotovia
Hummmm... este deu-me que pensar... muito bom, muito "fluído".
ResponderEliminar