"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

31.1.12

Manusmriti ( As Leis de Manu ) . ROSA DO MUNDO

.


Índia                                                                                                                  Manusmriti ( As Leis de Manu )



CRIAÇÃO

   Ao fim desse dia e noite, aquele que estava adormecido acorda, e depois de acordar, cria a mente, que é simultaneamente real e irreal.
   A mente, impelida pelo desejo de criar, desempenha a tarefa da criação transformando-se a si mesma, e é daí criado o éter; dizem que o som é à natureza deste.
   Mas do éter, modificando-se a si mesmo, floresce o vento puro e poderoso,  veículo de todos os perfumes; diz-se possuir a qualidade do tacto.
   Do vento que se transforma nasce a luz brilhante, que ilumina a dissipa a escuridão; diz-se possuir a qualidade da cor.
   E da luz, que se modifica a si mesma, nasce a água, possuindo a qualidade do paladar, e da água vem a terra que tem a qualidade do olfacto; é a criação no seu início.

TRAD.:  MANUEL JOÃO MAGALHÃES


R O S A   DO   M U N D O
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM

A LIÇÃO DOS GRAFITTI . álvaro lapa

Varel caminha agora no campo ameno dos cactos, das trepadeiras, dos coelhos. Vai olhando em volta, satisfeito pela aragem que de momento se elevou. Afasta alguma sarça mais cerrada, busca o caminho por entre arbustos cada vez mais duros e a atenção eleva-se-lhe para o sol que oscila entre os ramos. O terreno desce agora para um nítido vale onde avista pedras e um regato. Escorrega até ao fundo do pequeno abismo poeirento, e salta o regato para a outra margem. Sombrio, o lugar. Senta-se no chão e agarra o solo. A seu lado uma pedra grande, de sob cuja poeira irradia um nítido traçado intencional. Limpa e lê :


O CAMPO É MUITO VASTO.




álvaro lapa   raso
como o chão


editorial estampa 1977

26.1.12

EM CÍRCULO, OUVI . PAUL CELAN

.

EM CÍRCULO, OUVI
a conversa desfiada, oca,
com sons caninos
em algumas pausas -


Perseguem-te com desdém, e tu,
com sentidos prévios na garganta,
um trejeito na boca,
atravessas a nado o rio desse destino.


O grito de uma flor
anseia por uma existência




PAUL CELAN
A MORTE É UMA FLOR
POEMAS DO ESPÓLIO


EDIÇÃO BILINGUE
TRADUÇÃO, POSFÁCIO E NOTAS DE JOÃO BARRENTO
COTOVIA

24.1.12

BEATITUDE . Nuno Júdice

.


No paraíso, na idade de ouro,
ouvindo os anjos tocarem alaúde
e flauta, as nuvens acorrem
como ovelhas
à sua beira. Então, os santos
pegam nas tesouras e começam
a tosquia das nuvens. Lá
em baixo, nos prados onde as almas
se juntam, começa a chover: e como
já não haverá guarda-chuvas,
na idade de ouro,
as almas constipam-se,
amaldiçoando
as ovelhas, as nuvens
e os santos. Só os anjos, continuando
a tocar, se riem, beatíficos, ouvindo
o bater da chuva
por entre o espirrar
das almas.




Nuno Júdice
Pedro, Lembrando Inês
Publicações Dom Quixote



23.1.12

AS MUSAS CEGAS . herberto helder

.
                                   IV

Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minutos a minutos mais concretos.

A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram 
palavras.
Eu próprio caio na mulher, e o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstracta que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.


Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.


Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo, com o amor do amor,
não só a palavra mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro de casa.


No mundo tão concreto.




herberto helder
POESIA TODA


assírio&alvim

8.1.12

Friedrich Hölderlin . FRAGMENTOS DE PÍNDARO



O Infinito.


Se da justiça o muro,
O alto, ou a sinuosa ilusão eu
Escalo, e assim, a mim mesmo me
Circunscrevendo, me vivo
Para fora, quanto a isso
Tenho num duplo sentido
O ânimo para o dizer com precisão.

Uma graça do sábio, e o enigma quase ficaria por resolver. A oscilação e o conflito entre justiça e sagacidade resolve-se de facto apenas na relação ininterrupta. " Tenho num duplo sentido o ânimo para dizer com precisão. "  Que eu encontre então a coesão entre justiça e sagacidade, que terá de ser atribuída não a elas mesmas mas a um terceiro, através do qual elas se mantêm infinitamente ( com precisão ) ligadas, é quanto a isso que tenho um dividido ânimo.



Friedrich Hölderlin
FRAGMENTOS DE PÍNDARO

tradução, notas e posfácio
BRUNO C. DUARTE

ASSÍRIO & ALVIM