"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas
2.11.13
O SENHOR COGITO E O MOVIMENTO DAS IDEIAS - Zbigniew Herbert
As ideias passam pela cabeça
diz uma expressão corrente
a expressão corrente
sobrestima a circulação de ideias
a maior parte delas
permanece imóvel
no meio de uma paisagem pesada
de outeiros ermos
e árvores ressequidas
por vezes atingem
a corrente rápida de outro pensamento
acampam na margem
sobre um só pé
como as garças famintas
com tristeza
recordam-se das nascentes secas
e andam em círculo
à procura de um grão
não atravessam
porque não chegariam a nenhum lado
não mudam de lugar
porque não têm aonde ir
permanecem empoleiradas nas pedras
torcendo as mãos
debaixo do céu
pesado
e baixo
do crânio
Zbigniew Herbert
ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS
antologia poética
apresentação e versões
Jorge Sousa Braga
ASSÍRIO&ALVIM OUTUBRO 2009
9.10.13
14.4.13
QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão
O MUNDO QUANDO
NÃO ESTAMOS A OLHAR
( g; - m;)
g;
A mão do poeta folheia a minha vida procurando
o sítio onde algo se passou, o sobressalto que ainda
hoje te mantém suspenso, indeciso sobre quem vive
na tua vida? Não eu esta mão guio; quem a guia então
se é ela quem me guia? Que podem os versos saber
desse sítio que o papel não chega para estancar.
O sítio retrai-se quando a mão se aproxima e contudo
é uma figura do medo que nele pulsa e se projecta
por cada vinco e dobra do teu corpo desconhecido.
O poeta troca de mão e insiste que o que procura
é o sítio onde por duas vezes olhaste a tua morte
e não era a mesma
MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO 2007 . poesia o campo da palavra
28.1.13
equívoco permanente
boca aberta
de boca a boca.
assombram-se as línguas
nas palavras gustativas.
ra in " Memórias Internadas "
27.1.13
REMORSO POR QUALQUER MORTE - JORGE LUIS BORGES
Já livre da memória e de qualquer esperança,
quase futuro, ilimitado, abstrato,
não é um morto, o morto: ele é a morte.
Como esse Deus dos místicos,
de Quem devem negar-se os predicados,
o morto ubiquamente alheio
é só a perdição e ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos uma cor nem uma sílaba:
é este o pátio que os seus olhos já não partilham
e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança.
Até o que pensamos
poderia ele pensar;
repartimos por nós como ladrões
todo o caudal das noites e dos dias.
Fervor de Buenos Aires ( 1923 )
JORGE LUIS BORGES
Obra Poética Vol. 1
Trad.: Fernando Pinto do Amaral . Quetzal setembro 2012
21.1.13
QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão
O FUTURO OUTRORA ( a; - g; )
g;
Livre é o dom nas mãos do mundo: a alegria.
Nunca saberás dizer como se move sobre as águas
[a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.
Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste
comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.
MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO 2007 . poesia o campo da palavra
19.1.13
O Aprendiz Secreto - António Ramos Rosa
Ao fim de cada construção diária, ao crepúsculo, o construtor sobe a uma torre de pedra para meditar um pouco. A plenitude da tranquilidade é perfeita nos campos fulvos e ondulados em redor, coberto de ervas altas, de flores e arbustos e marginados por um riacho sob a penumbra verde de um arqueado tecto de folhagem. Dir-se-ia que o olhar do construtor encontrou o ser em extensão, o ser que se oferece, no seu mutismo eloquente, e ao mesmo tempo se guarda no mesmo espaço do seu tranquilo esplendor. A meditação não é mais do que a contemplação de uma matéria que contem em si o excesso da sua energia calma e a densidade materna que envolve todas as interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento. Por isso o construtor se integra na paisagem e, reflectindo-a, não a elabora nem a altera. Toda a sua vida está intacta e plenamente segura na indistinção entre o seu íntimo e a túmida e fresca serenidade da paisagem que o envolve. (...)
O APRENDIZ SECRETO
ANTÓNIO RAMOS ROSA
Quasi . 1ª EDIÇÃO, JANEIRO 2001
1.1.13
GUARANIS ( Mito da criação ) ROSA DO MUNDO
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!
é sobre a terra que Nhamandu Grande Coração,
divino espelho do saber das coisas,
se anima.
Tu que fazes com que se animem
aqueles a quem deste o arco,
eis: de novo nós nos animamos.
As coisas são assim: quanto às Palavras indestrutíveis,
as quais nada, jamais, enfraquecerá,
nós,
os pouco numerosos órfãos das coisas divinas,
nós as repetiremos, animandos-as.
Que nos possamos então animar
e animar-nos uma vez mais,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro,
a tua divindade que é uma,
do teu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
faz com que a chama, faz com que a bruma
se engendrem.
Ele ergueu-se:
do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra, ele sabe-o por si próprio.
Do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra,
ele o desdobra, desdobrando-se,
ele faz disso a sua própria divindade, o nosso pai.
A terra ainda não existe, reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
o fundamento da Palavra futuro, ele a desdobra então,
disso faz a sua própria divindade,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro.
Conhecido o fundamento da Palavra futura,
No seu divino saber das coisas,
saber que desdobra as coisas,
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.
A terra não existe ainda,
reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.
TRAD.: VASCO DAVID
R O S A DO M U N D O
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM . 3ª ED. AGOSTO 2001
ASSÍRIO&ALVIM . 3ª ED. AGOSTO 2001
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