"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas
30.11.12
QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão
O FUTURO OUTRORA ( a; - g; )
e;
Olhas a lenta e pastosa sintaxe do mundo de cá
que te cerca de uma a outra margem e assobia
íntima e falsa beijando na tua nuca o beijo próximo
e verdadeiro dessa asa que da loucura dizem
dulcíssima. É apenas o som mecânico e oxidado
do ferro velho, no lusco-fusco dos bastidores
um teatro esventrado pela flor negra da carne
azul, essa flor que cresce carnívora.
E vês então a boca do mar abocanhando o rio
e regurgitando os detritos dos humanos: aviões
elegantíssimos e por demais eficazes; bombas
giratórias e algálias do mais puro cristal.
MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO 2007
poesia o campo da palavra
27.11.12
O QUE O DISCÍPULO ESCREVEU - Manuel António Pina
" Se tudo é ilusão,
se escrevo a ilusão de um poema ( o que quer que um poema seja ),
ou a ilusão de um poema se escreve a si mesma ( o que quer
que escrever seja ),
através de mim ( uma ausência ),
se a própria consciência disso é ilusão,
se a Palavra escreve através de palavras, de verbos e de
substantivos partilhando a mesma ilusão,
como um espelho reflectindo-se a si mesmo, uma sombra,
e se essa sombra é, por sua vez, a sombra de uma sombra de
uma sombra
da Sombra,
se o Definido, no entanto, como um espesso coração, pulsa no
indefinido e no fugidio,
ou se paradamente olha
fitando o próprio olhar,
se Homero, e Shakespeare, e Santo Agostinho,
e Buda, e Bodhidarma,
são fugazes reflexos desse olhar,
se o discípulo pergunta e o mestre não responde, ou responde
com alguma frase sem sentido ( pois não há sentido ),
ou se lhe bate, ou se o escorraça ( pois tudo é indiferente ),
se a Indiferença é, também ela, provavelmente, indiferente,
e é indiferente que, atrás de si, permaneça, ou não permaneça,
rasto ou sombra,
se de outro modo ou do mesmo modo
algo, alguma coisa, nenhuma coisa..."
Isto foi o que o discípulo escreveu.
No entanto que mão ( que mão Real ) segurou a sua mão?
MANUEL ANTÓNIO PINA
NENHUMA PALAVRA
E NENHUMA LEMBRANÇA
ASSÍRIO&ALVIM SETEMBRO 1999
21.11.12
ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS - Zbigniew Herbert
O SENHOR COGITO E A IMAGINAÇÃO
1.
O Senhor Cogito sempre desconfiou
dos ardis da imaginação
do piano no cume dos Alpes
do qual saíam notas falsas
não apreciava os labirintos
as esfinges inspiravam-lhe desgosto
habitava uma casa sem cave
sem espelhos nem dialéctica
as selvas de quadros convulsivos
não eram a sua pátria
elevava-se raramente
nas asas da metáfora
para cair de seguida como Ícaro
nos braços da Grande Mãe
adorava tautologias
a explicação
idem per idem
que o pássaro é pássaro
a servidão servidão
o cutelo um cutelo
a morte morte
amava
o horizonte plano
a linha recta
a atracção exercida pela terra
ZBIGNIEW HERBERT
ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS
antologia poética
apresentação e versões
JORGE SOUSA BRAGA
ASSÍRIO&ALVIM - OUTUBRO 2009
14.11.12
QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão
O FUTURO OUTRORA ( a; - g; )
d;
e tu vês estas estranhas aves que são nomes velozes
e, desferidas, cicatrizam no corpo da terra o céu aberto
e a demais matéria do tempo que não cessa.
Outrora seriam rios e montanhas; florestas e deserto
foram depois estaleiros e refinarias desafectadas;
ou esse rebanho de gruas vermelhas que consigo
traziam a tempestade e deslocavam a cidade.
As paisagens mudavam de lugar e perdidos eram
os lugares e as gentes com quem nasceras.
MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO 2007
poesia o campo da palavra
4.11.12
Maria Gabriela Lhansol - O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO
42
Meu menino passado,
De olheiras fundas e de olhos travessos,
Abertos e tapados de azul.
Eu contesto a cor, eu contesto
O que for que seja imóvel. Se o azul
não for profundo, veloz e apurado,
Teu olhar verá apenas o que sabe.
MARIA GABRIELA LLHANSOL
O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO
desenhos de ILDA DAVID´
ASSÍRIO&ALVIM - 2003
Meu menino passado,
De olheiras fundas e de olhos travessos,
Abertos e tapados de azul.
Eu contesto a cor, eu contesto
O que for que seja imóvel. Se o azul
não for profundo, veloz e apurado,
Teu olhar verá apenas o que sabe.
MARIA GABRIELA LLHANSOL
O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO
desenhos de ILDA DAVID´
ASSÍRIO&ALVIM - 2003
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