"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

27.11.12

O QUE O DISCÍPULO ESCREVEU - Manuel António Pina



" Se tudo é ilusão,
se escrevo a ilusão de um poema ( o que quer que um poema seja ),
ou  a  ilusão  de  um  poema  se  escreve  a  si  mesma  ( o que quer
                                                                     que escrever seja ),
através de mim ( uma ausência ),
se a própria consciência disso é ilusão,
se a Palavra escreve através de palavras, de verbos e de
                        substantivos partilhando a mesma ilusão,
como um espelho reflectindo-se a si mesmo, uma sombra,
e se essa sombra é, por sua vez, a sombra de uma sombra de
                                                                       uma sombra
da Sombra,
se o Definido, no entanto, como um espesso coração, pulsa no
                                                        indefinido e no fugidio,
ou se paradamente olha
fitando o próprio olhar,
se Homero, e Shakespeare, e Santo Agostinho,
e Buda, e Bodhidarma,
são fugazes reflexos desse olhar,
se o discípulo pergunta e o mestre não responde, ou responde
            com alguma frase sem sentido ( pois não há sentido ),
ou se lhe bate, ou se o escorraça ( pois tudo é indiferente ),
se a Indiferença é, também ela, provavelmente, indiferente,
e é indiferente que, atrás de si, permaneça, ou não permaneça,
                                                                    rasto ou sombra,
se de outro modo ou do mesmo modo
algo, alguma coisa, nenhuma coisa..."


Isto foi o que o discípulo escreveu.
No entanto que mão ( que mão Real ) segurou a sua mão?


MANUEL ANTÓNIO PINA
NENHUMA PALAVRA
E NENHUMA LEMBRANÇA

ASSÍRIO&ALVIM   SETEMBRO 1999

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